Antes de Lucas falar sobre o encontro de Jesus com o jovem rico, o evangelista apresenta um episódio que funciona como chave interpretativa dessa passagem: a tentativa dos discípulos de impedir que crianças se aproximassem de Jesus (Lc 18.15–17). Pessoas traziam crianças para que Ele as tocasse, mas os discípulos, agindo como guardiões do acesso ao Mestre, criaram uma barreira indevida.
Jesus, então, corrige essa atitude e declara: “Deixai vir a mim os pequeninos e não os impeçais, porque dos tais é o Reino de Deus” (Lc 18.16, ARC). Em seguida, Ele acrescenta uma outra afirmação: “Qualquer que não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele” (v.17). Essa declaração não exalta a inocência infantil em si, mas destaca a postura espiritual que caracteriza a criança.
No contexto bíblico, a criança representa alguém que confia plenamente, depende inteiramente e não reivindica mérito próprio. A criança não se sustenta, não se justifica e não negocia sua aceitação. Ela confia no cuidado do pai ou da mãe, depende de sua provisão diária e se submete à sua autoridade.
Essa dependência não é fraqueza, mas reconhecimento da própria limitação.
É importante notar que, apesar dessa postura ser exaltada por Jesus, as crianças foram inicialmente impedidas de se aproximar. Ou seja, mesmo carregando as características adequadas ao Reino, sofreram oposição. Logo após esse episódio, Lucas apresenta um contraste : agora não há oposição alguma à aproximação de um adulto, respeitado e influente. O texto diz: “E perguntou-lhe um certo príncipe” (Lc 18.18). Trata-se de alguém com autoridade, posição social e reconhecimento público.
A construção narrativa é intencional. As crianças, que nada têm a oferecer, são aceitas por Jesus. O jovem, que possui status, recursos e moralidade reconhecida, se aproxima sem obstáculos humanos, mas será confrontado espiritualmente. Lucas prepara o leitor para perceber que o problema não está no acesso externo, mas na disposição interior.
A pergunta do jovem revela sua perspectiva: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” O verbo “fazer” indica uma mentalidade baseada em desempenho. Diferente das crianças, que apenas recebem, o jovem busca alcançar algo por meio de ações. Ele se aproxima não em dependência, mas em autoconfiança.
Jesus responde corrigindo o entendimento sobre bondade: “Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus” (Lc 18.19). Essa resposta não rejeita o título, mas desloca o foco. Cristo conduz o jovem a reconhecer que a bondade absoluta não procede do homem, mas de Deus. Assim, Ele começa a desconstruir a base sobre a qual o jovem constrói sua segurança espiritual.
Esses versículos iniciais ensinam que receber o Reino como criança implica confiar sem reservas, depender sem negociar e reconhecer a própria insuficiência. Essa verdade, já apresentada nos versículos anteriores, servirá de critério para avaliar a resposta do jovem rico às exigências de Jesus nos versículos seguintes.
Lucas 18.20–23
Dependência infantil, amor supremo a Deus e o apego às riquezas
Após corrigir a compreensão do jovem acerca da verdadeira fonte da bondade, Jesus direciona o diálogo para a Lei. Ele declara: “Sabes os mandamentos: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra a teu pai e a tua mãe” (Lc 18.20, ARC). A escolha desses mandamentos não é casual. Jesus menciona apenas preceitos da segunda tábua da Lei, aqueles que regulam o relacionamento com o próximo.
O jovem responde com segurança: “Tudo isso tenho guardado desde a minha mocidade” (Lc 18.21). O verbo “guardar” indica observância contínua e disciplinada. Ele não se apresenta como alguém indiferente à vontade de Deus, mas como alguém moralmente correto e zeloso desde cedo. Do ponto de vista externo, sua vida parece irrepreensível.
Entretanto, o texto revela que obediência externa não equivale, necessariamente, a amor supremo a Deus. Diferente das crianças mencionadas anteriormente, que dependem inteiramente de seus pais, o jovem demonstra uma fé estruturada sobre aquilo que faz e sobre aquilo que possui. Sua obediência produziu confiança em si mesmo, não dependência.
Lucas registra então uma declaração decisiva de Jesus: “Quando Jesus ouviu isto, disse-lhe: Ainda te falta uma coisa” (Lc 18.22). Essa afirmação expõe uma lacuna espiritual profunda. Embora o jovem conheça e pratique os mandamentos relativos ao próximo, sua relação com Deus ainda não foi plenamente testada.
Jesus prossegue: “Vende tudo quanto tens, reparte-o pelos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me” (Lc 18.22). Esse pedido não representa a criação de um novo mandamento nem uma rejeição da Lei. Pelo contrário, trata-se de uma aplicação prática do princípio que resume toda a Lei: amar a Deus sobre todas as coisas (Dt 6.5).
Embora Jesus não cite explicitamente esse mandamento, sua exigência revela se Deus ocupa, de fato, o lugar supremo no coração do jovem. Ao tocar na questão das riquezas, Jesus identifica aquilo que concorria com Deus por esse lugar. As posses não são apresentadas como pecado em si, mas como o objeto no qual o jovem depositava sua segurança, identidade e estabilidade.
Aqui, o contraste com as crianças torna-se ainda mais evidente. As crianças nada possuem, nada controlam e tudo recebem. Elas confiam plenamente no cuidado de seus pais. O jovem, por outro lado, é chamado a abrir mão daquilo que lhe proporciona controle e segurança. Enquanto a criança vive pela dependência, o jovem vive pelo apego.
O convite “vem, segue-me” revela o cerne do discipulado. Seguir a Cristo implica deslocar a confiança de qualquer outro fundamento para a pessoa do próprio Cristo. Nesse sentido, o pedido de Jesus funciona como um teste: se Deus é amado acima de todas as coisas, nada é intocável.
A reação do jovem confirma essa leitura: “Mas, ouvindo ele isso, ficou muito triste, porque era muito rico” (Lc 18.23). A tristeza expõe o conflito interior. Ele deseja a vida eterna, mas não está disposto a abandonar aquilo que ocupa o centro de sua vida. Diferente das crianças, que entram no Reino sem reservas, o jovem recua diante do custo de colocar Deus acima de tudo.
Teologicamente, o texto ensina que o problema não está na riqueza, mas no lugar que ela ocupa no coração. O jovem não falha por possuir bens, mas por não conseguir amar a Deus sobre todas as coisas . Sua obediência à Lei era real, mas incompleta, pois não alcançava o primeiro e maior mandamento.
Assim, Lucas apresenta um ensino profundo: o Reino de Deus não é herdado apenas por disciplina moral, mas recebido por aqueles que confiam inteiramente em Deus, como uma criança confia em seus pais. O apego do jovem revela que, embora obediente, seu coração ainda estava dividido.
Lucas 18.24–27
A impossibilidade humana e a suficiência da graça divina
Após a reação do jovem rico, o foco do texto deixa de ser o indivíduo e passa a ser o ensino público de Jesus. Lucas registra: “E Jesus, vendo-o muito triste, disse: Quão dificilmente entrarão no reino de Deus os que têm riquezas!” (Lc 18.24, ARC). A observação de Jesus não é genérica nem abstrata; ela nasce daquilo que acaba de ocorrer diante dos olhos dos discípulos.

A dificuldade mencionada por Jesus não está no ato de possuir bens, mas no efeito espiritual que as riquezas produzem no coração humano. As posses tendem a gerar autonomia, autoconfiança e sensação de controle — elementos que entram em conflito direto com a dependência exigida para entrar no Reino de Deus.
Para reforçar o ensino, Jesus utiliza uma imagem forte e deliberadamente impactante: “Porque é mais fácil entrar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Lc 18.25). A figura do camelo, o maior animal comum na Palestina, atravessando o fundo de uma agulha, representa uma impossibilidade evidente. O objetivo de Jesus não é sugerir dificuldade extrema, mas impossibilidade absoluta sob critérios humanos.
Qualquer tentativa de suavizar essa imagem — como a ideia de um suposto “portão estreito” chamado fundo da agulha — não encontra base no texto bíblico nem no contexto histórico. Jesus intencionalmente escolhe uma figura absurda para comunicar que, por si mesmo, o ser humano não consegue entrar no Reino quando sua confiança está deslocada de Deus.
A reação dos ouvintes confirma o impacto da declaração: “E os que ouviram isso disseram: Logo, quem pode salvar-se?” (Lc 18.26).
No contexto judaico do primeiro século, a riqueza frequentemente era interpretada como sinal da bênção divina. Se até aqueles considerados abençoados encontram tamanha dificuldade, então a salvação parece inalcançável para todos.
É exatamente nesse ponto que Jesus conduz o ensino ao seu ápice: “As coisas que são impossíveis aos homens são possíveis a Deus” (Lc 18.27). Com essa afirmação, Jesus desloca completamente o eixo da discussão. A entrada no Reino não depende de status moral, desempenho religioso ou condição econômica, mas da ação soberana da graça de Deus.
Essa declaração não anula a responsabilidade humana, mas redefine sua natureza. O problema do jovem rico não era falta de esforço, mas excesso de confiança em si mesmo e em seus recursos. O Reino não se abre à autossuficiência, mas à dependência. Assim como as crianças entram no Reino porque nada têm a oferecer, também os adultos só entram quando reconhecem que nada podem comprar, conquistar ou merecer.
Lucas 18.28–30
A renúncia dos discípulos e a promessa da recompensa eterna
Após a declaração de Jesus acerca da impossibilidade humana e da suficiência da ação divina, Pedro toma a palavra: “E disse Pedro: Eis que nós deixamos tudo e te seguimos” (Lc 18.28, ARC). A fala de Pedro não deve ser lida como vanglória, mas como uma reação natural diante do contraste apresentado por Jesus entre o jovem rico e os discípulos.
Pedro expressa aquilo que estava implícito na mente do grupo: se o jovem, apesar de sua piedade e riqueza, recuou diante do chamado, qual é então a condição daqueles que atenderam ao convite de Jesus? A declaração “deixamos tudo” reflete a realidade do discipulado vivido pelos apóstolos. Eles abandonaram redes, barcos, meios de subsistência e vínculos de segurança para seguir a Cristo (Lc 5.11).
A resposta de Jesus não corrige Pedro, nem minimiza sua afirmação. Pelo contrário, Ele confirma a legitimidade da renúncia e estabelece uma promessa solene:
“Na verdade vos digo que ninguém há que tenha deixado casa, ou pais, ou irmãos, ou mulher, ou filhos, pelo reino de Deus” (Lc 18.29). O uso da expressão “na verdade vos digo” confere peso e autoridade à declaração, indicando um ensino de valor permanente.
Jesus reconhece que seguir o Reino implica perdas reais e concretas. A renúncia não é simbólica nem meramente interior. Envolve relações, estruturas familiares e seguranças legítimas. Contudo, o foco da promessa não está na perda, mas no propósito: “pelo reino de Deus”. A renúncia só encontra sentido quando motivada pelo senhorio de Cristo e pela submissão ao avanço do Reino.
Em seguida, Jesus apresenta a promessa: “que não haja de receber muito mais neste mundo e na idade vindoura a vida eterna” (Lc 18.30). O texto revela uma dupla dimensão da recompensa. Há uma retribuição no tempo presente e uma consumação na vida eterna. A recompensa presente não deve ser interpretada como prosperidade material , mas como a experiência de comunhão, provisão divina, nova família espiritual e propósito transformado.
Diferente do jovem rico, que possuía muitas coisas, mas saiu entristecido, os discípulos possuíam pouco, mas encontraram plenitude no seguimento de Cristo. O contraste é intencional: quem retém perde; quem entrega recebe. A renúncia pelo Reino não empobrece, mas redefine o conceito de riqueza.
Teologicamente, Lucas 18.15–30 ensina que:
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o Reino pertence aos que dependem, não aos que controlam;
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a obediência sem entrega total não produz salvação;
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a riqueza evidencia, mas não cria, a autossuficiência do coração;
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a salvação é impossível ao ser humano, mas plenamente possível a Deus;
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a renúncia motivada pelo Reino resulta em plenitude, não em vazio.
Assim, o texto apresenta um chamado claro e radical: entrar no Reino exige abandonar toda falsa segurança e confiar inteiramente em Deus. Crianças, discípulos e leitores são convidados a reconhecer que nada possuem para negociar com Deus — apenas mãos vazias para receber a graça que Ele oferece em Cristo.
