
A passagem de 1 Samuel 28:3-25 narra um dos episódios mais intrigantes da Bíblia: a consulta do rei Saul à bruxa de En-Dor. Esse evento ocorreu durante um momento crítico da vida de Saul, quando ele já havia sido rejeitado por Deus e se encontrava desesperado diante da iminente batalha contra os filisteus.
1. O Contexto Histórico e Espiritual
Saul começou seu reinado com a bênção de Deus, mas sua desobediência e falta de arrependimento o levaram a perder o favor divino (1 Samuel 13:13-14; 15:22-23). Desde o momento em que ele desconsiderou as ordens do Senhor e preferiu seguir sua própria vontade, seu declínio espiritual tornou-se evidente. Seu afastamento progressivo de Deus culminou em decisões cada vez mais desesperadas e erradas.
A morte do profeta Samuel representou uma grande perda para Israel e, especialmente, para Saul. Samuel era a voz profética que guiava a nação e exortava o rei a seguir os mandamentos divinos. Sem ele, Saul se viu sem direção, mas, ao invés de buscar um verdadeiro arrependimento e restauração com Deus, continuou sua trajetória de rebeldia e medo.
O texto enfatiza que Deus já não falava mais com Saul: “E perguntou Saul ao Senhor, porém o Senhor lhe não respondeu, nem por sonhos, nem por Urim, nem por profetas” (1 Samuel 28:6).
O Urim, uma das formas pelas quais Deus revelava Sua vontade ao sumo sacerdote, não ofereceu respostas, pois a comunhão entre Saul e Deus estava quebrada. Esse silêncio divino revela que Saul não apenas perdeu a autoridade como rei, mas também perdeu a bênção de Deus sobre sua vida.
Dominado pelo desespero, Saul tomou uma decisão extrema: consultar uma médium. Ele próprio havia expulsado os adivinhadores e feiticeiros da terra (1 Samuel 28:3), obedecendo às diretrizes de Deus contra tais práticas (Levítico 19:31; Deuteronômio 18:10-12). No entanto, em sua cegueira espiritual, Saul ignorou seus próprios decretos e procurou exatamente aquilo que Deus condenava.
O texto hebraico usa a palavra “אֵשֶׁת בַּעֲלַת־אוֹב” (eshet ba’alat-ov), que significa literalmente “mulher possuidora de um espírito de necromancia”. A palavra ôb pode se referir a um espírito familiar ou um tipo de prática ocultista que envolvia a invocação de mortos. Esse detalhe evidencia que a mulher de En-Dor não apenas praticava o espiritismo, mas possuía um vínculo direto com as forças espirituais malignas, algo que Deus claramente proibia.
2. A Consulta à Feiticeira e a Manifestação Sobrenatural
Saul disfarçou-se e foi até En-Dor à noite, o que demonstra sua consciência da gravidade do que estava fazendo. A escuridão simboliza seu afastamento de Deus e sua entrega às trevas espirituais. Ele, que deveria confiar no Senhor, agora recorria aos mesmos métodos que havia proibido em Israel.
A médium, ao ouvir o pedido de Saul, temeu pela própria vida, pois sabia que tais práticas eram passíveis de pena de morte segundo a Lei Mosaica. Saul, em sua hipocrisia e desespero, garantiu que ela não sofreria punição, mais uma evidência de sua completa inversão de valores.
Ao iniciar o ritual, a mulher de En-Dor parece surpresa com a aparição de Samuel. Isso sugere que o que ocorreu ali não foi uma simples fraude ou manipulação, mas um evento inesperado até para a médium. O texto diz que ela gritou ao ver Samuel (1 Samuel 28:12), indicando que essa aparição estava além do seu controle.
A Bíblia usa o termo “אֱלֹהִים רָאִיתִי עֹלִים מִן־הָאָרֶץ” (elohim ra’iti olim min-ha’aretz), que pode ser traduzido como “vejo um deus subindo da terra”. A palavra elohim aqui não indica divindade, mas um ser sobrenatural, como em outras passagens do Antigo Testamento (Êxodo 22:8; Salmo 82:6). Isso reforça a ideia de que essa manifestação era incomum e possivelmente permitida pelo próprio Deus para fins de juízo sobre Saul.
3. A Mensagem de Samuel e o Juízo Divino
Diferente das expectativas de Saul, a aparição de Samuel não trouxe palavras de conforto ou uma orientação sobre como vencer a guerra. Em vez disso, ele repreendeu Saul duramente: “Por que me desinquietaste, fazendo-me subir?” (1 Samuel 28:15). Essa pergunta já demonstra que Samuel não havia sido convocado voluntariamente, mas que fora forçado a comparecer em um evento que contrariava a ordem divina.
Samuel então confirmou o juízo de Deus: “Porquanto não destes ouvidos à voz do Senhor… o Senhor te fez, hoje, isto” (1 Samuel 28:18). A rejeição de Saul havia sido decretada muito antes, mas agora o rei enfrentava as consequências finais de sua rebeldia. Ele não apenas perderia o trono, mas também sua vida e a vida de seus filhos na batalha contra os filisteus.
A fala de Samuel contém a frase “וַיִּתֵּן ה’ גַּם־אֶת־יִשְׂרָאֵל עִמְּךָ בְּיַד־פְּלִשְׁתִּים” (vayiten YHWH gam et-Yisrael imcha be-yad Pelishtim), que significa “o Senhor entregará também Israel contigo nas mãos dos filisteus”. Esse detalhe enfatiza que a punição de Saul não afetaria apenas sua casa, mas toda a nação. O líder que se afastou de Deus levou consigo a ruína do povo.
4. Interpretações Teológicas
Foi Realmente Samuel?
Esse é um dos pontos mais debatidos entre os estudiosos. Existem três principais interpretações:
Samuel realmente apareceu:
Acredita-se que Deus permitiu a manifestação de Samuel para anunciar o juízo contra Saul, reforçando Sua soberania, mesmo dentro de um contexto proibido. John MacArthur, em sua Bíblia de Estudo MacArthur, afirma que “a aparição de Samuel não foi uma fraude, mas um evento genuíno, onde Deus, em Sua soberania, permitiu que o espírito de Samuel fosse trazido para confrontar Saul com o juízo divino” (MacArthur, 1997). MacArthur defende a ideia de que Deus, embora proibindo a necromancia, usou esse evento de forma excepcional para repreender Saul e realizar o juízo sobre sua vida e sua realeza.
Uma ilusão demoníaca:
Outros defendem que o espírito que apareceu era, na verdade, um demônio enganador, pois Deus não se comunica através de práticas ocultistas. Essa visão considera que a aparição foi uma manifestação de forças demoníacas permitidas por Deus, como uma forma de juízo sobre Saul, mas sem validação das práticas espiritistas. Matthew Henry, em seu comentário bíblico, sugere que, embora a aparição tenha ocorrido, ela poderia ser uma ilusão demoníaca, destacando que Deus não aprovaria esse tipo de prática (Henry, 1708).
Uma alucinação ou truque da médium:
Outros argumentam que Saul, tomado pelo desespero, foi enganado pela médium ou teve uma experiência alucinógena, interpretando de maneira equivocada o evento. Adam Clarke, em seu comentário bíblico, apresenta essa visão, sugerindo que a visão de Samuel foi, na verdade, uma ilusão, um truque psicológico ou manipulação pela médium.
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